quarta-feira, 7 de maio de 2014

Ela

Mesmo que por aqueles dias eu pensasse nela o tempo inteiro, achei tanta coincidência vê-la que até tropecei ao subir na calçada, demorando um pouco para organizar as ideias – tempo perdido, percebo, agora que estou distante - e assim “saber” que ela era ela - saber assim entre aspas porque não tinha, aliás, como saber se ela era ela de verdade, só intuía -, eu balançando embaixo de demasiados sóis de Recife iluminando através de uma absurda lupa ali o pequeno abismo precipício que ia da calçada à sarjeta, eu num estado que não tenho como definir muito bem, talvez num “estreitamento da consciência”, talvez como perdido numa contração acidental do tempo e do espaço, ou talvez como quando nos queimamos, como quando como só depois de uns momentos sabemos o que fazer quando nos queimamos - ou vimos na tevê ou alguém nos disse ou aprendemos por conta própria, não importa, dói tanto que por alguns momentos apenas “sabemos”, sabemos entre aspas o que fazer, sabemos algo que é quase a mesma coisa que não saber, sendo, ainda, um saber diferente, “sabemos” que é pra colocar água ou água gelada ou água morna ou água quente ou água sanitária ou álcool, ou podemos “saber” que é pra danar manteiga ou pasta de dente ou cuspe ou babosa ou terra na queimadura, ou pode ser a primeira queimadura, a primeira inocente queimadura, e daí não é difícil entender de onde saímos com tantos dragões e hidras e sarças e espadas ardentes, em qualquer um desses casos é tudo inútil e dói demais, dói tanto que só podemos saber, saber sem aspas, do estímulo, única e exclusivamente do estímulo -, é aí depois desses momentos de dúvida que finalmente acordamos, por assim dizer, com aquele barulho no jardim, prendemos a respiração esperando, ao mesmo tempo, ouvir algo e ouvir nada, finalmente acordamos com aquele grito que não sabemos se foi um grito ou um curtíssimo pesadelo, concentramos tanta atenção no estímulo - mesmo sem saber, sem aspas, se o estímulo existe ou não - que tornamos impossível, naquele momento, sabermos de outra coisa a não ser a dor, é por isso que a dor funciona, não que eu tenha sentido dor, mas vê-la me proporcionou sensação parecida, porque eu ”sabia" que ela era ela quando a vi de relance, e senti o cheiro característico de alma pegando fogo, então fiquei ali parado por um momento, um pouco sem saber que ela era ela, sem saber o que colocar na ferida – só sabia que não era pasta de dentes nem manteiga -, e quando eu soube de verdade e afinal que o que fazer, quando o choque da queimadura já tinha passado e só havia bolha e ardor, o sinal abriu e veio toda aquela torrente de carros, parecia um racha de ônibus, caminhões, carros, bicicletas e trens, eu não podia mais atravessar a rua e falar com ela, que era o que sabia que tinha que colocar na queimadura, eu agora tinha que gritar para ela, o que suscitou um problema gravíssimo, levando em conta o pouco de tempo que eu tinha - ela já ia virando a esquina -, e o problema gravíssimo era decidir se era melhor gritar o nome ou o apelido, o que agora, com todo o tempo do mundo, parece simples, mas não ali hora, no tic e no tac, tinha muita gente na rua, e eu pensava que talvez fosse melhor ser mais específico e gritar o apelido, para não causar mal-entendidos, vai que eu gritava o nome e ela não ouvia, e eu iria ficar ali, com todas as Marias da redondeza olhando pra mim, exceto ela, que iria dobrar a esquina e eu nunca mais na minha vida teria certeza, ao mesmo tempo que eu pensava que ela poderia pensar que eu pensasse que eu já era muito íntimo dela, e nem era um apelido muito bom também, enfim, o que aconteceu mesmo foi que em milésimos de um segundoeu já estava suando, tremendo, sentindo calafrios, vertigens, dores nas articulações, meus olhos se encheram de lágrimas e então ela deu mais um passo, tudo ficou escuro, acho que ouvi um trovão, e aí acabei gritando de susto, e acabou saindo o apelido mesmo, saiu um “Mamá” bem alto, mas foi como se eu tivesse espirrado, e aí a minha consciência, que já não estava essas coisas todas, ficou estreita de uma vez, mas o tempo se dilatou, e o resultado foi um Mamá largo e lento, esticado e mole, solto, desarticulado, porém muito alto, um som ruim, como um arroto num microfone, e isso não era o pior, o pior era que ela deu mais um passo e não dava mostras de olhar para trás, e eu só podia esperar, foi assim que pensei, para me consolar eu pensei que se ela não olhava para trás não era por não ter ouvido em definitivo, mas por não ter ouvido ainda, porque se o som anda apenas algumas poucas medidas de espaço por algumas outras medidas de tempo, era então apenas uma questão de tempo, e, mesmo se naquele lodo sonoro do meu arroto ela não reconhecesse seu nome, em algum momento ela iria olhar para trás, nem que fosse por susto, ela iria olhar pra trás assim que ouvisse, era essa a minha esperança, a esperança de sempre e de todo mundo, esperança que reside em saber que tudo o que o tempo faz é passar e tudo o que fazemos é esperar, ela me ouviria, e aí eu poderia pular e balançar os braços, ela me veria, e eu daria um jeito de explicar aquela bolha de saliva que tinha saído dentre meus dentes, seria apenas uma questão de tempo, ela me entenderia, então eu esperei, e na espera me entreguei à lembrança do dia em que a conheci, lembrei do seu vestido branco, e lembrei do céu aberto, e lembrei do mar, e tudo ficou bem, até fiquei menos pálido e abri um sorriso, tudo por uma lembrança que eu na verdade eu não tinha, porque quando eu a conheci ela estava de bermuda e camisa, e chovia, e estámos num apertamento apertado do centro, às cinco da tarde de uma quinta-feira, mas fiquei pensando no mar e no céu até que borracha e buzina me acordaram aos gritos, e senti o calor do motor da 4x4 bem do meu lado direito, eu tinha andado para o meio da avenida sem perceber, e o motorista muito sutilmente me mandou tomar no cu, me chamou de bicha e perguntou se eu queria morrer, grande pergunta que até agora não tive como responder, e a partir daí o tempo começou a passar mais depressa, meu uivo começou a lutar com o ar espesso demais, e não estava levando a melhor, meu grito ia sendo mutilado em cada quina de cada brisa, meu verso abjeto ia ficando com menos vogais, seu sangue estava nos pneus cantando, nos facões batendo nos cocos, naquela risada descompensada e áspera que jamais esquecerei, na lata de refrigerante caindo, no meu coração, na criança que chorava, no cachorro que latia, todo o bulício de todo o mundo, e sangrava ainda mais nos passos dela, cada passo era uma taça caindo no chão, umas taças bem caras, umas taças gigantes, e dali a pouco seriam pratos, castiçais, lustres, janelas, muros, tetos e edifícios de cristal, meu grito morreria nos cacos, e ninguém me ouviria, e eu iria ficar ali a sós com meu grito mutilado, e eu iria ficar ali sozinho cada vez mais eu, as pessoas me veriam de boca aberta, e fariam cara de espanto ou nojo ao ouvir aquela obscenidade sônica saindo um rosto pálido, suado, de olhos esbugalhados, mas ninguém veria o que eu tinha visto, ninguém saberia dos meus motivos, ninguém gritaria como eu gritei, jamais gritariam, apenas me ouviriam, exceto ela, que no mínimo fingia que aquele soluço idiota não era com ela, todos ouviam meu pigarro gigante, exceto ela, ela não ouvia só de raiva, e meu grito ia se quebrando, se cortando, se desfazendo, olhei pro grande sábio da 4x4 e soube que iria morrer, mas resisti, para dar sentido ao dia, à crueldade mínima do dia - o dia em slow motion, o dia 360º, o dia 3d, o dia raios-x, o saldo disponível do dia, as 8 horas de trabalho do dia, a hora de almoço do dia, os lenços úmidos e os apertos de mão do dia, o fim do mundo do dia, vocês, eles e nós do dia, os adeuses, olás e acolás do dia, as pontes do dia, eu esperei, eu resisti, e então olhei de volta para a esquina e ela já tinha virado fumaça ou tinha sido abduzida por extraterrestres ou tinha se metamorfoseado naquela velhinha que olhava assustada para mim, e o que eu pude fazer foi voltar para a calçada sem morrer, sem ouvir os restos das buzinas e os xingamentos dos motoristas praquela figura pálida, magra e suada, que subia a calçada lenta e finalmente, com os olhos fundos e com as mãos trêmulas, aquela figura que afinal sabia o que fazer, que era pensar que ela talvez não fosse ela.
 
Licença Creative Commons
Este obra de Rafael Laete dos Santos, foi licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.