quinta-feira, 18 de março de 2021

Traumas

 Ela juntou o ar abafado de sábado com sua raiva curtida por décadas e saiu para comprar bifes e tomates. Faria assim de qualquer jeito qualquer almoço e quisesse que achasse ruim, sem suco, sem feijão, sem nada mais, porque hoje ela não ia se matar de cozinhar presse povo que não tava nem aí pra mim.


Levou com ela o mais novo, quase arrastando, não ia deixar o pirralho sozinho em casa, essas vizinhas fofoqueiras se metem em tudo, quero ver pagar minhas contas. Os meninos mais velhos sabe-se lá onde, como, com quem e por quê estavam pelo mundo, os santinhos, anjinhos… sempre chegam na hora do almoço e ainda reclamam.


Na feira logo na esquina de casa, achou os tomates bem maduros, e os bifes no açougue ela pediu pra amaciar. Levou junto uma latinha de cana também, que ninguém é de ferro. 


Voltou com as sacolas numa mão e o menino na outra.


Fazia calor, todos com aquela careta horrível de sol, todo mundo muito sério e suado, mas além disso, do sol e do suor e das caras feias estavam muitos ali onde não estavam um segundo antes, no meio do asfalto, ao redor do girador, todo mundo da rua, como que cantando juntinhos naquele burburinho surpreso, lutando sem tanta vontade para ver algo no chão, agachados, deitados, pulando naquele mormaço de carnaval.


Era bem na esquina da casa dela; se ia passar por lá de qualquer jeito ia também dar uma olhada.


Segurou com mais força o menino pelo braço e levantou as sacolas até a altura dos peitos, pra ver se pelo menos a comida escapava das bundas e barrigas alheias. Quanto ao menino, ele sempre poderia tomar outro banho quando chegasse em casa. Quando se esfregava em algum conhecido ia pescando uma ou outra informação. Atropelado. Morto. Cabeça. Coitado. Sangue. O motorista fugiu. O sinal era aberto. Caiu da bicicleta. Não sei quem é. Mora lá em cima.


Assim foi indo sem muita dificuldade, pensando que pelo menos teria uma história pra contar, mas a criança, lá embaixo de todo mundo, começou a perder ar, e não via do mesmo modo: faria de tudo, daí em diante, para não ter que contar nem pra si mesma o que veria. Então alguém foi empurrado, e assim todos fomos empurrados. A mulher caiu no chão. Pisotearam os bifes e os tomates. Ela gritou com alguns, sem ser notada, até cansar, distribuiu uns tapas, e aí sim foi notada, se apoiou no chão e então deu de cara com o morto.


Um ônibus realmente havia esmagado uma cabeça.


Se levantou e pegou as sacolas amassadas, em silêncio. Então se deu conta de que o menino não estava mais ali.


Ele tinha sentido medo, e fugindo voltou para casa. Se escondeu embaixo da cama até que teve muita fome, e saiu e comeu o bife com tomate e o macarrão que tinham deixado ali no chão algumas horas antes. Entre uma mordida e outra não podia deixar de ver o prato e pensar o quanto parecia com resto da cabeça que tinha ficado lá na esquina de sua casa.


 
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Este obra de Rafael Laete dos Santos, foi licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.