sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Rasgo

Em alguns maus dias, ao me encontrar parado, a contragosto, em algum canto desse charco, como num ponto de ônibus ou em qualquer fila, tinha a certeza de que estava, literalmente, no inferno, e que estava ali há nada menos que uma eternidade, parado; sabia, então, que minha memória era completamente ilusória, que meu senso de futuro, meus motivos, meus planos eram ainda mais ilusão: alguns instantes de pesadelo, dos quais não demorava a acordar. Não poucas vezes, ao acordar desses pequenos pesadelos, assaltava-me uma sensação em tudo peculiar, particular desses momentos, a certeza de que algo essencial tinha acabado de escapar por entre meus dedos, por um detalhe ridículo, menor, por causa da falta daquela insignificância anônima, eu tinha deixado de ver, finalmente, depois de tantos anos de espera ou procura, a verdade, olhos nos olhos.
Ainda assim, uma impressão continuava. Não tinha mais certeza, mas tinha fé que, nesses maus dias, estava no inferno. Era assim, quando qualquer menor pedaço do Recife se transformava num vasto e atroz panorama, quando percebia uma distância entre mim e todo o resto, quando sentia o estranhamento de me reconhecer como meu próprio demônio, um diabo pobre que escolheu Recife para habitar, para se infernizar.

Era nisso que eu pensava dentro do táxi, parado na Agamenon alagada. Meu pé quase não doía mais, apenas latejava. Estava assim de novo, distante. Imaginava que quase não era meu pé, era algo como um bicho, um cão. Um pé estranho que gania. Talvez apenas distração, porque há trinta minutos eu não conseguia parar de me sentir a pessoas mais estúpida do mundo. Que tipo de gente tira o sapato pra atravessar uma rua alagada? Você, claro, não vê onde pisa, e aí pode sentir um corte fundo. Uma lata, um caco de vidro, uma faca. Um talho horrível, largo, que abriu o meu pé direito como se ele fosse uma linguiça quente. O sangue se espalhou, e eu pensei, já dentro do táxi, que era mesmo uma imagem horrorosa, o sangue muito vivo, vermelho, muito vermelho, boiando na lama, naquele barro sujo, como se fosse água e gordura, mas havia uma sensação de que não eram tão diferentes um e outro. Aliás, que tipo de monstro dali brotaria, se fosse possível? Que tipo de coisa poderia nascer de uma mistura assim?
Eu tenho medo do meu próprio sangue. Fiquei nauseado; tive vertigens. Eu não sei como cheguei em casa, mas fui direto lavar meu pé, que ainda sangrava muito. Era um corte muito ruim, comprido, tomava quase toda a lateral do pé direito, da base do dedinho até o calcanhar. Lavei da melhor maneira que pude e consegui estancar o sangue com uma toalha. Sentado na privada, eu percebi que não sentia fome, mas tinha uma garrafa de vinho na geladeira. Terminei o dia no sofá, bêbado e ferido. Quando acordei de madrugada, um pouco mais quebrado de dormir no sofá, já chovia, e o pé estava inchado, vermelho, dolorido. Talvez esse frio seja febre. Deveria ter ido ao hospital, ao invés de vir para casa. Chamei um táxi e enquanto esperava, me arrumei como pude, paralisado pela preocupação com o pé. Fiz um curativo tão feio que parecia mais destinado a piorar a situação, mas era o que eu tinha. O táxi chegou e eu desci. Eram umas sete da manhã.
Que burrice, deixar uma ferida besta dessas infeccionar. Talvez, se eu quisesse mesmo que o pé ficasse podre, não teria encontrado uma maneira tão boa de fazê-lo. Nem se quisesse.
Mas acho que o Recife me preparou para isso.
O bairro do Espinheiro me preparou para isso. Agora a gente sabe que o bairro mais sincero do Recife era o Espinheiro. O Espinheiro era a cara e a alma da cidade. Não era São José ou o bairro do Recife, nem Boa Viagem, nem Casa Forte. Era o Espinheiro. Primeiro, porque era um bairro extremamente pequeno. Pequeno e cheio de criaturas ocas. Pequeno, ambicioso, mesquinho, desonesto. Pegava, de uma dúzia de bairros fronteiriços, sempre uns metros a mais. Santo Amaro, Boa Vista, Graças, Rosarinho, Encruzilhada, Torreão. As famílias decadentes, incestuosas, brancas. O almoço de domingo. É preciso manter a dignidade a qualquer preço, diziam assim mesmo, sem perceber o pecado, sem intenção irônica. Ser preconceituoso, mas não muito. Nunca lavar a louça. Ser um pouco cego, moralmente flexível. Empregadas domésticas, sim, mas trombadinha e cheira-cola só da Encruzilhada para lá, aqui não tem disso, não, aqui tem gente boa, de família. Cidadão de bem. Era o que todo mundo se dizia, mas eu acho que não dormiam bem à noite.
Você vê, ali onde era a esquina da Quarenta e Oito com a rua do Espinheiro, não tem um prédio marrom claro? Bege? Lá, um dia colocaram uma placa, cobrando do prefeito a solução pros alagamentos constantes daquela esquina. Ainda assim, uma moça, um dia, moradora do mesmo prédio, resumiu tudo muito bem: moradora daquele prédio, ela me confessou, sim, confessou, com uma culpa tão sincera quanto hilária, que no Espinheiro nenhuma rua inundava. Quando eu tive que dizer para ela que ela estava completamente enganada, ela resistiu com tanta convicção, que por uns instantes, eu pensei que quem estava enganado era eu. Eu não insisti e nunca mais a vi, mas não duvido que até hoje o bairro dela ainda não inunde. Mesmo depois do que aconteceu. Talvez, talvez ela ainda more lá, e esteja esperando a empregada chegar para descongelar a lasanha. Isso tudo, e esse pessoal só precisava andar cem metros para qualquer lado para encontrar uma favela, um córrego, um canal. Apenas cem metros, e descobririam Recife. Precisavam apenas sair num dia de chuva.
Na chuva, Recife sai do armário.
É o que eu digo: a geografia daquele bairro me salvou. Me disse umas verdades. Por exemplo: a chuva em Recife é a instituição mais democrática da cidade. Não importa quanto você tenha, você vai se foder. Claro, pobre se fodia o dobro, mas minha rua, por exemplo, ficava intransitável. Não era perder móvel, perder cachorro, perder a casa, perder a vida. Mas ninguém andava. E também não precisava de nenhuma tempestade não, nem de explodir barragem nenhuma, qualquer chuvinha bastava. Qualquer chuviscar e a rua fica cheia da merda daquelas velhas brancas. E então, eu via da janela do meu quarto aquele povo tão católico perder a hora da missa. Não podiam arriscar, aquele pessoal tão religioso, não podia arriscar pegar leptospirose, ou tétano, ou vermes, nem para salvar a própria alma. Eu ria de suas pequenas desgraças, e quando a chuva passava, eu ainda mantinha um pouco de revolução em mim. E eu perseguia, com um pouquinho de querer poder, as pessoas desesperadas naquelas ruas recém-inundadas, enlameadas. Era isso que eu gozava. Eu perseguia seu tédio, sua ignorância, seus preconceitos de fila do supermercado. Eu os olhava e estavam nus, porque eu sabia que aquela lama, aquele lodo nos sapatos de veludo, é a mesma lama e o mesmo lodo que afogaram e mataram Zefa ou Ciça ou Carminha na Linha do Tiro ou na Campina do Barreto. Exatamente o mesmo tipo de lama. Olhava-os bem nos olhos e deixava que soubessem que eu sabia. Deixava que soubessem que eu sabia que também chafurdavam na lama, embora negassem, até com alguma sinceridade - não duvido disso -, que o Espinheiro tenha algum, apenas um ponto de alagamento. Apenas isso. Funcionou durante um tempo. A chuva me fez sobreviver àquele bairro da mesma maneira que me ajudou a sobreviver em Recife. É isso que acontece. A chuva faz Recife sair do armário.
Quando chove, não é apenas um problema por vez, como primeiro o calor, depois o trânsito, depois a gente mal-educada, depois o preço desonesto, ou a música ruim. É tudo de uma vez. É a minha convicção de que todo infeliz que mora nessa cidade deveria pensar de vez em quando: quando chove, Recife rasteja desde seus menores buracos até nós, e de repente, cai sobre nós, completa e nua, como uma mulher de más intenções. E não podemos suportar olhar para ela. Mas, sem a chuva, é como se todo esse povo estivesse traumatizado. Fingem que vivem em algum grande centro do mundo, usam grandes palavras, grandes marcas, bebem grandes vinhos, andam em grandes carros, fazem grandes compras, acham que têm grandes empregos.
- É a única coisa que o Espinheiro faz: alaga, eu disse, com algum enfado. - Praticamente todas as ruas tem um ou dois pontos de alagamento, quando não ficam alagadas de cabo a rabo!
- Pois eu moro há cinco anos no Espinheiro, meu querido, e nunca vi nenhuma rua alagada.
Meu querido.
Também sentia medo do hospital, não gosto de hospital. Não gosto de hospital, de escola ou de delegacia. Aguento até igreja, como aguento o terreiro, mas hospital, não. Eu estava muito puto, e o taxista não parava de falar. Foi aí que eu percebi que o Recife não me salvou porra nenhuma. Só me ensinou preconceito e resignação cínica. Chovia muito, eu me lembro, e a Agamenon, na altura da Restauração, estava inundada. O canal transbordou. O taxista começou a falar que estava com medo que entrasse água no táxi, porque o táxi era novinho e começou a resmungar coisa como se não devia mesmo ter recusado a corrida, porque bem que lhe tinham avisado, a Agamenon tá cheia d’água, rapaz, mas como se ele não soubesse que estava tão ruim, aceitou mesmo assim. E então, estava tudo parado e começou de novo, com o mesmo zumbido de sempre. A certeza. Ali estava, eu via o véu. Era pastoso. Então, mais uma vez, tive a certeza: eu estava no inferno. E isso me libertou, não Recife. Eu sabia que estava no inferno, isto é, sabia que tinha morrido. Trinta e cinco anos de Recife mata qualquer alma. E a minha estava perdida. Eu, literalmente, tinha a certeza que estava no inferno. Então paguei, rindo, como se fosse mesmo uma piada, paguei a viagem e desci. Fui andando até o Português, o hospital. Tirei a blusa e a camisa. Tirei os sapatos. Não sentia nada, a não ser um pouco de frio. Eu podia tudo. Claro, o pé incomodava, e era só por isso que eu ia até o hospital. Queria um pé novo, para aproveitar tudo com tudo. Cheguei rindo ao hospital. E então, senti um pouco de medo, aquela coisa toda branca, o ar-condicionado, o cheiro de álcool, de éter. Senti medo de que não estivesse, finalmente, no inferno. Mas eu só fazia esperar, parado no charco, uma pulseira amarela no braço, me lembrando que era tudo uma piada.
Finalmente me chamaram. Não doeu quando limparam, muito pelo contrário, eu senti um prazer, como às vezes sinto quando me coço, um comichão bom, rasparam tudo, lavaram com água, com aroeira, com babosa, sei lá, depois cobriram com uma malha fina e fiquei um dia inteiro deitado, pensando no que significa ser uma coisa bruta. Brutal. Estado bruto. Brutalidade. Ser uma pedra. Sem conhecer, sem saber, sem olhar. Permanecer, ao invés de sobreviver. Pensei também como é bonito um homem como eu, bem acabado, fruto da civilização, educado, talvez até demais, pasteurizado, uniforme, asseado. E quanto vale ser uma coisa e outra, ser bruto ou ser asseado. A diferença que faz um livro ou um pente, ou ter mãos de assassino, pés prontos para pisar. E que tipo de criatura se adaptaria melhor a Recife. Adaptar-se. Nunca fui uma criatura flexível. Sempre fui uma criatura bruta. Do alto de toda minha civilidade, educação, boa-vontade, sempre se escondeu uma certa potência para a brutalidade. Isso não está certo na época que vivemos. Querem que você se envergue e não parta. Antes, pelo menos aceitavam que você se submetesse; agora, tiraram até isto de você. Não chore, não sinta raiva, não odeie, não ame demais. Não admita, não se confesse.
Mas agora, estou livre.
Estou mal, bastante mal, mas estou livre. Uma faca incógnita rasgou meu pé, mas estou livre. Assim eu pensava. Uma faca anônima furou meu pé direito, furou até os ossos, separou os nervos, os tendões, mas estou livre. Uma faca rasgou meu pé e eu tenho febre, me cortaram mais um pouco, depois me costuraram, me deram comprimidos, injeções, conselhos, tudo isso a cru, mas estou livre. Do que estou livre?
Agora, todos os dias são maus dias. No inferno, aqui, a gente vive e sobrevive de restos. Restos bastam. Não só restos de comida, mas restos de afeto, de memória, de dentes, de vida, de livros, todos os dias estou no inferno, como os restos. E não é tão ruim. Pelo menos ainda tenho os dois pés.
 
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