sábado, 27 de outubro de 2018

Macarrão

Pode ter sido num dia qualquer, mas se eu fosse chutar diria que tem tudo pra ter sido num sábado. Tudo tinha um ar de sábado, e ela juntou isso com raiva e saiu para comprar bifes e tomates, porque faria assim uns bifes no molho de tomate e macarrão e quem quisesse que achasse ruim, assim mesmo, sem suco, sem feijão, sem mais nada, porque hoje ela não ia se matar de cozinhar praquele povo que não tava nem aí pra ela.

Levou com ela o mais novo, não ia deixar o pirralho sozinho em casa. Talvez nem se preocupasse muito, mas só tem fofoqueira nessa rua e podia ser que ficassem falando. Os mais velhos sabe-se lá onde, como, com quem e por quê estavam pelo mundo, os santinhos; a única certeza que tinham era da mesa cheia, ao meio dia.

Na feira, achou os tomates bem maduros, e os bifes ela pediu pra amaciar, que nem com isso ela queria perder tempo hoje. Levou junto uma latinha de cana também, que ninguém é de ferro. Pagou e foi embora, com as sacolas numa mão e o menino na outra.

Fazia muito calor, estavam todos com a nossa careta terrível de sol, como se fosse todo mundo muito sério e suado, mas apesar do sol e do suor e das caras feias estavam todos ali, no meio do asfalto, uma multidão mesmo, todo mundo da rua, todos falando, bem juntinhos, olhando algo no chão, ou tentando ver algo no chão, naquele mormaço, alguns até mesmo quase deitados, tentando ver entre as pernas dos outros.

Era bem na esquina da casa dela; se ia passar por lá de qualquer jeito ia também dar uma olhada.

Segurou com mais força o menino pelo braço e levantou as sacolas até a altura dos peitos, pra ver se pelo menos a comida escapava das bundas e barrigas alheias. Quanto ao menino, ele sempre poderia tomar outro banho quando chegasse em casa. Quando se esfregava em algum conhecido ia pescando uma ou outra informação. Atropelado. Morto. Cabeça. Coitado. Sangue. O motorista fugiu. O sinal era aberto. Caiu da bicicleta. Não sei quem é. Mora lá em cima.

Assim foi indo sem muita dificuldade, pensando que pelo menos teria uma história pra contar, mas a criança, lá embaixo de todo mundo, começou a perder ar, e não via do mesmo modo: faria de tudo, daí em diante, para não ter que contar nem pra si mesma o que veria. Então alguém foi empurrado, e assim todos fomos empurrados. A mulher caiu no chão. Pisotearam os bifes e os tomates. Ela gritou com alguns, sem ser notada, até cansar, distribuiu uns tapas, e aí sim foi notada, se apoiou no chão e então deu de cara com o morto.

Um ônibus realmente havia esmagado uma cabeça.

Se levantou e pegou as sacolas amassadas, em silêncio. Então se deu conta de que o menino não estava mais ali.

Ele tinha sentido medo, e fugindo voltou para casa. Se escondeu embaixo da cama até que teve muita fome, e saiu e comeu o bife com tomate e o macarrão que tinham deixado ali no chão algumas horas antes. Entre uma mordida e outra via o prato e pensava no resto da cabeça que tinha ficado lá na esquina de casa.

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Este obra de Rafael Laete dos Santos, foi licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.